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  • Foto do escritorMiguel Dias

Como organizar o referencial teórico?



O referencial teórico de qualquer texto científico apresenta-se para uma grande parte dos autores, como um processo cheio de dúvidas quanto à sua organização. Como preparar o referencial teórico? Como deve estar estruturado? O que deve conter? Como deve ser a escrita científica?

Para Margaret Thatcher, antiga primeira-ministra do Reino Unido, a gestão pública deveria ser realizada através do rigor, do controle e do planejamento. Essa matriz de atuação, originou que fosse conhecida como a "Dama de Ferro", título atribuído pelo jornalista soviético Yuri Gavrílov. Independentemente das suas posições e de algumas polêmicas quanto ao seu estilo de liderança, a ex-governante, realizou várias declarações que apelaram para a exigência na obtenção dos objetivos. Uma dessas célebres declarações, destacou a importância do planejamento: "Planeje o seu trabalho para hoje e todos os dias. Em seguida, trabalhe o seu plano".

O planejamento é fundamental para o desenvolvimento do referencial teórico dos vários formatos de textos científicos. Tentarei deixar algumas propostas para a organização desse importante processo.

Antes disso, considero pertinente responder a uma primeira questão: qual a importância de realizar o referencial teórico? Em algumas ocasiões, já ouvi alguns estudantes caracterizarem esse processo como complexo, demorado, enfadonho e desnecessário. Apesar dessas resistências, o referencial teórico é fundamental para a qualidade dos textos científicos, permitindo:

  • Prevenir erros: através da revisão bibliográfica aprofundamos conceitos, conhecemos teorias, quebramos preconceitos, ultrapassamos crenças e descobrimos resultados sobre a temática de cada pesquisa. Graças a esses conhecimentos adquiridos, iremos prevenir erros que poderíamos cometer sem esse aprofundamento teórico;

  • Orientação para caminhos seguros: o processo de levantamento bibliográfico permite conhecer movimentos teóricos, tendências e metodologias já utilizadas. Com esses elementos, os pesquisadores evitam seguir por caminhos inseguros onde correm riscos de não chegar a bom porto;

  • Aprofundamento de termos: graças ao referencial teórico podemos aprofundar termos que, numa fase inicial das pesquisas, são percebidos de modo mais superficial. As leituras realizadas vão permitir conhecer vários perspectivas sobre o termo estudado e compreender as suas diferenças;

  • Identificar autores e centros de conhecimento: quando não somos especialistas em alguma área de conhecimento, através da revisão bibliográfica conseguimos saber quem está a escrever sobre determinado aspecto ou identificar autores de referência. Além disso, é possível conhecer instituições e centros de pesquisa que possuam experiência nesses domínios;

  • Conhecer resultados de pesquisas anteriores: o contato com pesquisas já realizadas na mesma área de conhecimento possibilita a identificação de tipos de participantes, formas de coleta de dados, contextos, metodologias e técnicas de pesquisa. Esse conhecimento é fundamental para avaliar a proposta metodológica das pesquisas e evitar a redundância de projetos;

  • Reforçar a justificativa de pesquisa: com domínio de pesquisas realizadas, o pesquisador pode encontrar elementos que reforcem os motivos para o seu trabalho;

  • Compreender os resultados: a organização do referencial teórico será de extrema relevância para compreender os resultados da pesquisa e possibilitará um profícuo diálogo com esses resultados.

Reconhecida a importância de realizar o referencial teórico, podemos questionar: o que não pode faltar no referencial teórico? Quais os elementos obrigatórios? Julgo que temos três elementos fundamentais para inserir no referencial teórico:

  • Definição dos termos, conceitos ou variáveis presentes na problemática e nos objetivos da pesquisa. Imaginando que o trabalho tem como objetivo conhecer os fatores motivacionais na carreira docente, torna-se vital que o referencial contenha fontes bibliográficas que abordem os conceitos de motivação, fatores motivacionais e carreira docente;

  • Citar autores de referência. Na sequência do exemplo anterior, devem ser utilizados autores considerados pioneiros no estudo da motivação (ex. Maslow, Herzberg, etc.) e demais autores que, recentemente, têm desenvolvido o conceito da motivação;

  • Referência de trabalhos já desenvolvidos na área da pesquisa em curso. Seguindo o exemplo, o que tem sido publicado sobre motivação de professores? O que esses trabalhos têm concluído? O que a literatura da área aponta como prioritário? Os fatores motivacionais dos docentes têm sofrido alterações? Estas são algumas questões que ajudam a compreender o tipo de referências a conter no referencial teórico.

Reconhecidos os elementos básicos do referencial teórico, chegou a hora de organizar a bibliografia disponível. Perante a existência de várias fontes bibliográficas de autores diferentes, períodos distintos e com quadros teóricos diversos, podemos perguntar: como organizar a sequência do referencial teórico? Penso que podemos considerar quatro opções:

  • Ordem cronológica. Em alguns casos, será importante distribuir as fontes consultadas por sequência temporal, do mais antigo para o mais atual. Este tipo de ordenação, permite transmitir uma evolução dos conceitos ao longo do tempo e revelar os avanços da ciência;

  • Ordem dos conceitos. A evolução da sociedade tem provocado transformações nos conceitos. Encontramos vários exemplos desse fato. O termo "Necessidades Educativas Especiais" sofreu transformações através do contributo de vários pesquisadores chegando à redefinição para "Educação Inclusiva". Durante muito tempo a dimensão tecnológica na área de educação era abordada através do conceito das "Tecnologias de Informação e Comunicação" (TIC) e hoje realizamos uma abordagem pelas "Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação" (TDIC). Também na área área de administração, iniciaram-se as discussões teóricas sobre o papel das pessoas no desenvolvimento das organizações pelo conceito de "Gestão de Pessoal", passando por outros como a "Gestão de Recursos Humanos" e "Gestão do Capital Humano". Esses exemplos mostram como pode ser importante organizar a sequência do referencial teórico seguindo a sequência dos conceitos;

  • Ordem dos modelos. A evolução do conhecimento é, muitas vezes, organizada por modelos (teorias) que transmitem e agrupam contribuições de vários autores. Podemos encontrar um exemplo na área da educação com as teorias da aprendizagem: comportamentalismo, cognitivismo, construtivismo e sócio-interacionismo. Esta proposta de organização pode ser desenvolvida noutras áreas com as Relações Internacionais (RI), analisando de forma separada as Teorias Clássicas de RI e as Teorias Contemporâneas de RI. Desse modo, em função dos objetivos da pesquisa, pode tornar-se relevante organizar o referencial teórico através de uma apresentação que siga esses modelos teóricos;

  • Ordem das metodologias. Para algumas áreas de conhecimento é essencial identificar os métodos de pesquisa. Encontramos um bom exemplo na área da Saúde onde pode ser necessário ordenar um referencial teórico por apresentação de fontes bibliográficas que revelam a evolução da ciência através de estudos efetuados por revisões sistemáticas de literatura, pesquisas tipo survey, estudos experimentais e quasi-experimentais. Considerando o tipo de texto científico que desejamos produzir, as metodologias usadas nas fontes bibliográficas podem ser um critério de organização do referencial teórico.

Chegou a hora de iniciar a escrita científica. Quais as características da escrita científica ao longo do referencial teórico? Para além dos cuidados básicos para evitar erros comuns (quanto ao uso de pronomes, formulação de opiniões individuais, referências vagas a estudos, etc.), julgo pertinente deixar as seguintes sugestões:

  • Do geral para o específico. Iniciar o referencial teórico com referência a questões gerais ajuda a contextualizar os fenômenos estudados. Caso estejamos a estudar a eficiência da gestão pública na Guiné-Bissau, será importante iniciar o texto fazendo referência ao papel dos Estados na boa gestão de recursos, posteriormente, apresentar elementos gerais sobre o país (história, geografia, dados econômicos, etc.) e, finalmente, elencar as questões específicas da gestão pública do país (estrutura organizacional, número de servidores públicos, orçamento público, etc.). Esta forma de organizar a escrita auxiliará na compreensão dos assuntos para além da dimensão local;

  • Articular conceitos e teorias. Devemos evitar uma escrita telegráfica, ou seja, uma escrita com fragmentos. Um dos aspectos mais importantes da escrita no referencial teórico é a articulação entre os conceitos. Sempre que possível, devemos recorrer a frases de ligação entre os parágrafos para fazer comparações, introduzir novos conceitos ou sistematizar o que foi apresentado. Inúmeras vezes, ao longo de muitos trabalhos acadêmicos, identifico textos que são construídos por parágrafos sem um fio condutor. A escrita deve ser fluída como se o autor estivesse contando uma história, com um enredo. Em suma, devemos privilegiar a comparação de autores e seus contributos;

  • Fazer sínteses. Algumas dissertações e teses desenvolvidas ao longo de várias páginas terminam de forma abrupta como se chegassem num precipício. Devemos evitar que os capítulos terminem sem uma síntese que apresente as ideias principais. Recomendo que se organize alguns parágrafos para identificar os principais conceitos do capítulo, ideias comuns entre os autores e eventuais lacunas da bibliografia utilizada. Essa sistematização pode ser realizada através de um quadro;

Considerando que as propostas apresentadas às questões anteriores contribuem para um bom planejamento e desenvolvimento do referencial teórico, podemos ainda questionar: que estratégias utilizar para qualificar e diversificar o referencial teórico?

  • Tipo de fontes. Devemos utilizar, sempre que o tipo de texto justifique, diversos tipos de fontes: artigos de revistas científicas, livros, dissertações/teses, relatórios, etc.;

  • Qualidade dos artigos. Com o crescimentos de bases de dados e repositórios científicos, os pesquisadores encontram, em segundos, milhares de artigos científicos. Como escolher os melhores? Podemos utilizar como critério o número de citações dos artigos e os indicadores de avaliação das revistas (Ex. Qualis ou fator de impacto);

  • Natureza temporal. Muitos pesquisadores optam por utilizar referências atuais para garantir que as produções revelam o que é mais moderno nesse área de conhecimento. No entanto, em muitas situações, as produções científicas devem ser equilibradas com referências mais antigas (permitem conhecer a origem de termos/teorias) e referências mais recentes (divulgam a atualidade e projetam o futuro);

  • Distribuição geográfica. Considero muito interessante que durante o referencial teórico seja apresentada uma visão dos conceitos de âmbito global, ou seja, conhecer como esses conceitos são abordados para além do contexto local. Como o assunto é visto na África, na Ásia ou na Europa? Caso não seja oportuno fazer uma análise dessa amplitude, pelo menos, dar uma visão do país. Integrar informações desse tipo ajuda a contextualizar a dimensão e importância do fenômeno estudado numa escala mais global (país ou internacional);

  • Matrizes conceptuais. Todos os temas podem ser analisados por diferentes concepções. Encontramos bibliografia que promove o uso das tecnologias nas escolas de educação infantil e outras que colocam resistência a essa utilização. Encontramos bibliografia econômica que aprova medidas protetoras quanto às importações e bibliografia que rejeita essa posição. Julgo que o referencial teórico, deve conter elementos que estão mais alinhados com a linha de pesquisa em curso e, do mesmo modo, fazer referência a outras matrizes conceptuais que não estejam alinhadas com esse linha de pensamento. Alguns jovens pesquisadores consideram necessário não fazer isso por temerem que possa fragilizar os textos. Julgo que esse receio não se justifica e a inclusão de matrizes conceptuais distintas revela uma maturidade do pesquisador ao desvendar conhecimento pelos "dois mundos".

  • Base de dados. Várias organizações (públicas e privadas) sistematizam informações na forma de relatórios, estatísticas e indicadores. Essas informações são disponibilizadas em portais públicos que divulgam informações sobre desenvolvimento humano, saúde, educação, população, etc. Entre essas instituições está o Banco Mundial, a OCDE, a União Europeia, a UNESCO, entre outras. Além destas organizações internacionais podem ser consultados banco de dados de organismos nacionais dedicados à produção de estatísticas ou outras organizações da sociedade civil (associações, ordens profissionais, etc.). Através das informações recolhidas nestas bases de dados, é possível contextualizar informações no referencial teórico através de complementações dadas pelos autores consultados e na sistematização dos contributos teóricos.


Os textos científicos reúnem características específicas que talvez não justifiquem um rigor semelhante àquele que Margaret Thatcher imprimia na gestão do Reino Unido. No entanto, para obtermos uma boa sequência na organização do texto e uma boa consistência das ideias, devemos elaborar um planejamento do referencial teórico.




Miguel Dias

prof.migdias@gmail.com


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